Num tempo espaçado pelo desejo de ti...
#tempocovid19
2.
Num tempo espaçado pelo
desejo de ti...dou voltas à rua do meu bairro inundado de sombras de
gente escondida, convocando a memória, porque hoje é o primeiro dia
da mitigação e, assim, nos vamos recolhendo, ainda mais, sobre o
peso do corpo, adentrando-nos no medo. O medo é uma côr sem cheiro
e tem várias moradas. Mesmo que não tivesse nascido hoje esta
fronteira laranja, imposta pela voracidade bélica do fermento que a
fome gera, ninguém ficará doente ao mesmo tempo, desejam as
autoridades do meu país, as ruas do meu bairro estariam vazias. É
assim há dez dias. Estou em casa há dez dias. Ainda tenho memória
de todos eles. Era manhã quando cedo desinfectaram as ruas do meu
bairro. A minha rua foi particularmente massacrada pela intensidade
dos jactos contra as portas, os manípulos, paredes, escadas, carros
e árvores. Graças a Deus que ninguém passou. Há dez dias que os
cães veêm à janela e, durante a tarde, olham a rua. Hei-de
fotografar a minha rua e o seu cão branco. A fotografia deixou de
ser a louca procura do instante, penso, porque a fotografia, neste
tempo, apenas capta espaços lentos e silenciosos. Por isso, não
tenho pressa.Nunca deveríamos ter substituído a pintura pelas
lentes do instante. Amanhã voltarei a ver na minha rua as mesmas
sombras e o cão. Todos os dias, à mesma hora, quando preparava o
quotodiano, (re) vejo o cão. Na minha rua, o cão branco de mancha
negra transformou-se no único protagonista, aparentemente vivo da
histórica fronteira laranja, onde os homens se devem acautelar.
Por isso vou rezar as
vésperas desta quinta-feira do IV semana da quaresma. A oração é
o tempo dos homens e eu estou sedenta desta companhia. Na minha rua
os sinos da Igreja continuam a tocar. São eles que humanizam a
paisagem da minha rua.
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