Os dias da guerra #1

 

É o quarto dia dos dias da guerra que vêm aí. 

No primeiro dia, o som dos carris na linha férrea, gemendo, traziam os passos mansos das botas calçadas, ainda abotoadas com tempo, dos rapazes barbeados com tempo, das despedidas com tempo, do tempo com tempo, próprio de quem lentamente se habitua a adentrar nos assuntos de peso e tamanho grande;

No primeiro dia, as pessoas não se viam, estavam dentro dos carros, os carros formavam uma espécie de carreiro de formigas, longo e serpenteado, os homens ainda conduziam o futuro, os filhos bem sentados no banco de trás, mansos e seguros, as mulheres com a vida toda dentro delas;

No primeiro dia milhares de pessoas puxavam os trolleys, como se as suas casas conservassem a vida, e nos quadrados das malas coubesse a memória dos sonhos, e por isso, apenas fosse necessário uma muda de roupa, porque afinal, vou ali e vejo já, até que os homens sossegassem, apagando a fúria do messianismo;

No primeiro dia, as crianças ainda nasceram nos hospitais, foram à escola, comeram, e até brincaram;

No primeiro dia, fiquei parada na Praça Vermelha, no instante da soma de todas as vezes que a visitei, à espera que o Bolshoi abrisse na memória, entendo melhor o José Milhazes em 2009, quando já critico nos convidada ao exercício da razão, não deixando, assim, aos jornalistas portugueses nenhuma dúvida sobre a “arquitectura” do Kremlin.

No segundo dia, em Kiev, as sirenes começaram a gritar, aqui e além, mas os gritos já traziam a certeza dos dias da guerra que vêm aí;

No segundo dia, as dispensas das casas ficam cheias de comida, alguma já a apodrecer;

No segundo dia, as forças vivas da Polónia e Roménia começaram a dirigir-se às suas fronteiras para receber a humanidade que os tinha escolhido;

(as plataformas de comboio cheias de mulheres e crianças, desta vez as fotografias são a cores e as roupas estão desenhadas pelos costureiros da democratização)

No segundo dia, #Zelensky o Presidente da Ucrânia ainda não sabia que não estava só;

No segundo dia, as estatísticas começaram a bombardear os misseis com o número de pessoas mortas na guerra, refugiados, desalojados, despojados;

No segundo dia, a dor, a raiva, frustração, cansaço, desespero dos ucranianos (crianças, jovens, mulheres e homens) inundaram o espaço mediático e, também nós, num repente ventano, cristalizámos a guerra dentro ;

No terceiro dia, dos dias da guerra que vêm aí, mais de 100 mil pessoas já tinham chegado à Polónia;

No terceiro dia a maioria dos refugiados são mulheres e crianças porque os homens dispõem-se a morrer pela Pátria e pela Liberdade. Foi decretada a Lei Marcial e não há na Ucrânia homem nenhum, dos 18 aos 60 anos, que não chore.

No terceiro dia, os europeus deixaram de ter medo, ou por causa dele, e numa decisão sem precedentes, determinaram um imenso pacote de sanções ao Estado russo.

No quarto dia, Putin fala em dissuasão nuclear – é a primeira vez, desde 1945;



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