Transiberiano - Viagem ao Interior da Terra - Sibéria II #5

O comboio acaba de estacionar na plataforma da cidade de Zima. Arrasto a cortina, olho pela janela, é noite, estamos quase no quarto dia, só falta esta noite, para cumprir este primeiro troço, longo, o mais longo dentro do comboio, a minha carruagem está absolutamente silenciosa, ouço lá fora o choro dos travões, os russos estão há três dias fechados nas suas cabines, sim, os russos nunca saem das suas cabines, foram habituados assim, ao silêncio, por isso tomam vodka para abrir o coração, estão de pijama, dormem, nós não, os povos da Europa ocidental, nunca dormem, descansamos no sono, é tudo quanto conseguimos fazer, não sabemos se voltamos, se algum dia voltaremos a fazer esta viagem, não podemos perder a árvore, uma árvore da floresta boreal, o que seria de nós sem aquela árvore, uma, apenas uma, de centenas de milhões de outras, aparentemente igual a esta, mas só aparentemente, mais de quatro mil kilometros de árvores, abetos, pinheiros, bétulas, do comboio não distinguimos umas das outras, senão as cores, o branco doente do tronco, o verde inorgânico das folhas, e leio os Irmãos Karamosov, e penso, Dostoiévski já andou por aqui, preso e deportado aqui na Sibéria, a paisagem é tão igual, sinto a velocidade do comboio a abrandar, os travões a chorar, sim, aqui em Zima tudo chora, mas é noite, não vejo a cidade, apenas 40 000 mil habitantes, sei que um deles foi grande, Yevgeny Aleksandrovich, o poeta, escreveu Baby Yar, que Shostakovich musicou, o mundo ficou a saber o horror dos nazis em Kiev, dos soviéticos, sim, também eles perseguiram os judeus, judeus russos, mataram-nos, e Zima ainda chora, «foi aqui que perdi o meu amor, foi aqui, em Zima, que as palavras não disseram, pela primeira vez, amo-te» contavam-me, o comboio apitava falta pouca terra para Pequim, ainda faltavam 15 dias, perdi o meu amor, o horror, dos Gulag, sim, aqui em Zima, e ninguém fala, nunca ninguém disse Zima, aqui, onde o comboio pára 30m, só em Zima, nas outras localidades, segundos, quantos não terão ficado apeados em Zima, a sonhar com a nuvem branca de inverno, quantos?

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