Transiberiano - viagem ao interior da Terra - Moscovo #2

 


Esta era a outra metade do mundo, que o resto do mundo conhecia, só de ouvir falar. Durante 70 anos, o Ocidente não viu, sentiu ou conheceu, senão, superficialmente, muito superficialmente, o modo como russos, mongóis e chineses viviam e sentiam o pulsar da História, da história concreta de mais de um bilião de seres humanos. Esta era a outra metade do mundo… que hoje, se pode dizer assim…

Moscovo. Kremlin. Ponto a partir do qual se construiu uma cidade, Moskva, em cinco círculos. Todas as ruas de Moscovo vão dar ao Kremlin. Toda a geografia de alma da Rússia conflui neste maravilhoso pomar de maçãs, através do qual vejo o rio, as Catedrais, o Palácio Presidencial, o Mausoléu de Lenine, a Praça Vermelha. 

  

Ás vezes parece que andamos sempre às voltas sobre o mesmo ponto. O Kremlin, sempre o Kremlin, a Catedral de S. Basílio, e o rio. Pois é, mas uma cidade circular tem este problema. Acresce à geometria do círculo, a matemática da geografia da cidade, e lá vem a estatuária dos gigantes que ficaram: Marx, Lenine, Estaline, este foi capaz de ligar todos os círculos da cidade, por túneis subterrâneos, para que os seus mortos não se visem, soubessem, existissem.  


 

Gostava de ficassem com esta ideia: Moscovo não é visitável a pé. A escala da cidade é gigante. Dou-vos um exemplo: demorarão sete minutos e meio a atravessar de um lado ao outro, qualquer das artérias principais de Moscovo. Por isso, as ruas em Moscovo chamam-se Prospekt, sim, de perspectiva, como se estivessemos a olhar para um imenso território, capital do maior país do mundo, a cidade mais a norte da Terra, pisada, vivida, amada, por mais de 10 milhões de habitantes, frios, aparentemente congelados, porque a tragédia ainda mostra a dor e a dor vive na última camada da pele branca, eslava, e tártara.

Não se deixem iludir com a obra-prima do metro de Moscovo. Podia pensar-se que as 188 estações de metro, de uma rede de 300 km, a sexta mais extensa do mundo, mas a mais populosa, viajam diariamente nove milhões de pessoas, podia pensar-se, dizia eu, que as estações são todas belas, como, por exemplo, as da Praça Vermelha, ou da Rua Arbat. Mas não, não são. As mais belas foram estrategicamente pensadas como instrumentos de propaganda soviética. Coincidiam com as entradas para as grandes fábricas do regime ou para as praças principais da arquitectura stalinista. Serão, no máximo, 50 estações, aquelas, que constituem verdadeiras obras de arte industrial. As outras são a metáfora do laboratório vivo da história do século XX moscovita: velhas, sonâmbulas, escuras e tristes. 

Quero contar-vos uma «estória»: os cães vadios de Moscovo também apanham o metro. Geralmente escolhem as estações menos povoadas, por isso, se nunca se cruzar com eles, a não ser que seja ousado, e se atreva a ir mais longe, muito mais longe que o primeiro círculo da cidade, palácio monumental, e queira descobrir a obra do homem novo deixada pelos sovietes. Aí, nesses lugares inundados por caixotes onde moram pessoas, encavalitadas umas sobre os outras, quase sempre arrumadas em casas com menos de 50 m2, descobre vadios, também cães, que todos os dias apanham o metro para ir buscar comida a lugares mais centrais da metrópole. Entram nas últimas carruagens e saem rigorosamente naquela onde a vida se diz estrela vermelha da esperança. Depois, voltam a viajar, na mesma linha, para o mesmo lugar de onde vieram, outrora, habitado por fábricas onde as pessoas comiam e só saiam para dormir com outras famílias, no mesmo apartamento. 

Vá a Moscovo na companhia da língua de Tosltoi, Gogol, Dostoievski, Turguêniev, Tchekhov, sem a qual, dificilmente compreenderá a alma eslava, as gentes, as paisagens, as cores, edifícios, monumentos e praças.

(c) Ana Paula Lemos 

 

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