A insustentável leveza da estupidez...

 

«Agora sim vai ser mesmo mau! Vamos começar a seleccionar doentes. Nunca como agora houve tanta pressão de doentes críticos.... E eu estou nisto há 10 meses...Recebemos agora um de Santa Maria ventilado, 50 anos, já não têm vagas! Aqui há 3 vagas Covid nos intensivos e o internamento todo cheio!» Uma amiga, médica, acaba de enviar por WhastApp esta mensagem para um grupo diferenciado de pessoas, ao qual, pertenço. A palavra diferenciado não se prende apenas com a pluralidade etária, sexual, embora não haja ninguém para lá dos dois sexos que conheço, masculino e feminino, social, uns têm apelidos sonantes, outros nem por isso, há silvas e ferreiras; com grupo diferenciado quero, também dizer, gente preparada academicamente, todos licenciados, alguns mestres e doutores, distintos representantes de várias profissões liberais. Nesta bolha não conheço bem todos os protagonistas da pertença. No que concerne à narrativa COVID19, enquadramentos e tipificações, percebi desde Março do ano passado, que também nós, tal como espelha o tempo e o país, dividi-mo-nos entre realistas, negacionistas, matemáticos e epidemiologistas, políticos, economistas, médicos e jornalistas, empresários e desempregados, medrosos, corajosos, intuitivos, inteligentes, estúpidos. Temos todos opiniões que podem tipificar psico, socio e profissionalmente as categorias anteriormente enunciadas. E dei comigo a pensar na década em que partilhei a vida, intensamente, com um grupo de médicos, acabadinhos de sair do internato, colocados nas respectivas especialidades, distribuídos pelas maiores e menores, assim se referiam a muitas, a cirurgia era a maior, a radiologia a menor, onde vai o tempo, sim, foi há muito, muito tempo, 30 anos, e como a técnica nestes anos se sobrepôs à clínica, os meios de diagnóstico à prática sapiencial, a máquina ao homem enfim, como seria impensável, nesse tempo, acreditar na neuro-fisio-biologia como uma área arrumada no saber, quantas e quantas conversas ouvi, sobre o futuro mas como percebi que o futuro não se agarra. Nesse ano de 1981, quando todos começavam as suas vidas profissionais, iniciava a minha licenciatura em direito na Universidade de Lisboa com o desejo secreto me um dia tornar-me repórter. E assim aconteceu 12 anos depois, por graça de Deus. Durante os Verões da minha licenciatura, como sempre fui pouco atraída pelo calor da praia, mesmo sendo africana, passei muitos dias a ler alto sebentas de Cardiologia, Dermatologia, Cirurgia, Pneumologia, a alguns destes meus amigos, sobretudo aos que desenvolveram mais a memória auditiva que, entretanto, se preparavam para os exames de saída do internato rumo a várias especialidades, distribuídas por todo o país. Leia-se o país do litoral. Estas duas circunstâncias da vida tornaram-se muito próxima e sensível do tema da comunicação científica, do exercício da medicina, da natureza do ato médico, da história da medicina, dos hospitais, das politicas públicas, e tantos outros assuntos que estes amigos ajudaram decisivamente a pensar e construir como temas de reflexão. Tornei-me, assim, pouco tolerante à iliteracia médica e científica, até porque, nunca na história da humanidade estes temas se tornaram tão democraticamente acessíveis. A prová-lo, o recurso constante das populações diferenciadas à auto medicação, à compra de medicamentos naturais na web, à perseguição obsessiva das melhores dietas, desde a paleolítica à digital, passando pela procura das doenças para os seus sintomas, e tantas outras consultas que o Google prova numerando o interesse na pesquisa de milhões de páginas. Assim, como é possível que no nosso grupo do WhatsApp, e em tantos outros grupos que compõem a sociedade portuguesa, algumas pessoas não tenham ainda desenvolvido a curiosidade de saber o que é uma pandemia, qual a natureza e especificidade do vírus que a provoca, quais são as consequências sanitárias que determina, especificidades psicológicas, filosóficas, históricas, económicas, políticas e sociais (?) Pergunto-me até quando a insustentável leveza da estupidez alimentará este estufado em lume brando, no qual Portugal se tornou, porque muitos de nós não percebe que entre uma crise sanitária (provocada por uma pandemia) e a economia, não há escolhas a fazer, os equilíbrios são quase impossíveis, pressionar é um instrumento politico próximo do carcinoma, e assim o futuro vai-se hipotecando à vontade da ignorância. 
 Não é a primeira vez na história de Portugal. Tenho a certeza que não será a última. Da minha parte há 10 meses que o Outro e os outros sustam o sacrifício deste viver confinado. Afinal não fosse saber que a liberdade é Ele, diria, preciso de ir rapidamente à Gulbenkian. 
Como se luta contra uma pandemia? É a esta pergunta que todos nós, dez meses depois, já deveríamos saber responder.

Comentários

Mensagens populares