O azul tonal das sirenes...

  


 

2º Confinamento | 3ª dia de sol

Quando as noites de tão escuras deixam-se iluminar pelo azul das sirenes provocando a dor expressa no negro, totalizante, azul, do arco íris. 

Vejo-as, dezenas, as sirenes, distribuídas pelos corações silenciosos, as lágrimas de tão salgadas, caem mansas, e dou por mim numa curvatura assimétrica à razão, rezando, pelos sons tonais de tantos corações cuja pluralidade de sentires nunca autorizaram o conforto ao sentido, de Ti, que pena não O terem conhecido, não é bem a palavra, pena, mas o fado torna-as leves, as palavras, que pena tio, lembro-me de ter dito, tio que pena não O ter conhecido, pareceu-me que o meu tio não ouviu, mas as sirenes não nos deixam ouvir quando estamos encaixados, a velocidade, as curvas, ressoam no horizonte azul,  só a luz, a luz azul, mesmo que as caixas sejam encarnadas ou amarelas, a sirene é sempre azul, e o azul, na noite, ofusca a clarividência do sentido. Fica branca a luz azul desta negra cor onde só vejo a sombra do Mistério

Prevejo (quero mesmo ver) ou só o saber calcula a matemática da previsão e dentro da caixa fria da sirene aconchego o meu avô como naquele último dia, invadida pelo olhar denso do quase ver, caminho para lá, sim avô, para lá, nesse trilho do até já, do quase tudo até lá chegar, parece que nunca chegam, demoram muito tempo, é longo o som tonal das sirenes, os caminhos longos, de tantos corações, diferentes, numa pandemia é tudo diferente, na aparência, a pandemia do século XXI não está emparedada, não tem o muro físico da lepra, por isso, a pandemia é conspirativa, hoje está sol, a caminho vi o mar, na aparência parece que a matemática engana, e as mortes, não se morre só de Covid, pois não? Perguntam os mártires da aparência, sós,

- mas o ponto é mesmo esse, da morte, e devia ser dito assim, só de Covid já morremos muitos, morremos tantos sempre irrepetíveis, morreram milhares, milhões, de corações a mais do único que não devíamos ter deixado morrer,

- saber da morte, temos medo, afinal é uma pandemia, não conhecemos a resiliência, não O conhecemos, somos um deserto real onde a redenção não significa coisa nenhuma no pobre léxico do sentir, é tudo dramaticamente diferente, apetece gritar sobre o azul das sirenes, apetece perguntar: sabe o que é uma pandemia? Insistia o bombeiro cego de cansaço e dor.

Já é dia:

lá fora há longas filas para o voto antecipado nas #presidenciais21 e estranho. Paradoxo natural da linha simétrica à saudade dos velhos do meu país.

E penso neles neste dia terceiro do segundo confinamento. E com eles desespero naqueles que recusam a máscara da pandemia, porque está sol, as vacinas porque vacinar pode matar a evidência, e a evidência obriga-nos ao exercício da razão, e a razão diz-me que tudo vai ser difícil, muito difícil, e eu não quero sair de noventa, esse tempo mágico da obscuridade humana, onde quiseram que eu acreditasse ser imortal,

É a pandemia, acorda, olha, sê exigente, adulto, dizia o bombeiro do azul das sirenes, esgotado, como o médico a quem entregou o vírus, dê cabo dele, e o médico passou à enfermeira, e o vírus lá andou, e o hospital fechou. E os velhos? E os corações? E as pessoas do norte que vão ao sul, do centro à periferia, do continente às ilhas, sem a cama, a cama onde vi o meu avô partir tranquilo, e a minha avó tão confortavelmente preparada.

- Não, nos corredores, não devíamos pôr os nossos velhos. Que insuportável indiferença neste consentimento. 

- Grotesco gesto azul de uma sirene. 

Sim, claro que morremos todos um dia, de uma "coisa" qualquer. O meu pai morreu e não estava doente. Não morreu de doença nenhuma. O meu pai morreu atropelado. Morreu na fúria com que viveu sempre. Fúria de energia. Com pressa. Impaciente. 

É, então, a certeza de que morremos de alguma "coisa" que nos leva à insuportável indiferença do consentimento?

 

 

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