A gregária itinerante #2

Quando alguém outro dia, sem saber (bem) o que dizia, como é hábito de tantos temperamentos, lança a palavra “itinerante” para validar o território gregário da procura, o lugar da pintura de Fra Angelico, desafiou-me, e assim agradeço, à derradeira viagem do consentimento, quem sabe faltaria (?), lançando a disponibilidade para a aceitação do combate travado em tantas noites escuras onde só brilhava um pequeno rádio laranja, debaixo da almofada, às mãos de uma criança, caixote das minhas lágrimas, limpas pelas vozes que preenchiam o silêncio fundo, a linha unitiva de duas cidades, esse tempo longo que fez de mim a gregária itinerante só muito mais tarde consciência livre, sem medo.

Essa dor revisitou-me insistentemente e assim fui aprendendo a imitar os adultos na dissimulação das dificuldades, olhava-os nas avenidas novas sempre vestidos de preto, mais homens do que mulheres, sempre de chapéu na cabeça, conseguindo fingir que passeava tranquilamente mas só pela ruas de Lisboa, com 13 anos apenas, numa cidade estranha, absolutamente estranha, fingindo-me crescida, sem que em algum momento a família lá longe não ocupasse totalmente o meu coração.

Talvez me tenha tornado gregária itinerante. Comecei aos poucos a gostar da Europa, a identificar-me mais com a cultura europeia, com os portugueses e com Portugal, nem todos os meus familiares seguiram este itinerário, e de repente, deixei de apreciar o calor africano, e até o cheiro da terra.

O meu coração, porém, teimava em viajar. Eu queria a minha mãe. Eu desejava ser abraçada por ela. Eu queria acreditar que a minha mãe nunca me abandonaria. Eu estava sempre a viajar para ela.

Assim descobri a alma de um itinerante. Ou, se quisermos, descobri-me na verdade do impossível.

No Verão de 1974, os meus pais, vindos de uma longa viagem pela Europa, não me lembro bem se traziam as minhas irmãs pela mão, passaram em Lisboa levando-me com eles, de novo, à minha terra.

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