A gregária itinerante #3

O meu regresso a Lourenço Marques, seis meses depois da primeira estada em Portugal, fez-se via Joanesburgo, África do Sul. 

A minha mãe trabalhava na DETA, companhia aérea ultramarina moçambicana, tendo este facto permitido viajar pelo mundo com a sua família a preços sustentáveis, benesse esta mais proveitosa às minhas irmãs apesar de ser eu a filha mais velha.

Entre irmãos, as narrativas que se constroem acerca do que se vive em comum são sempre dissonantes. Entre nós também é assim. Quando nos juntamos, a nossa irmã do meio tende a materializar a subjectividade própria dos nossos olhares, à disciplina matemática da memória. Nunca nada é exactamente como dissemos. Há sempre um ângulo a faltar à “verdade” narrativa.

Nessas alturas, quando a discussão já não consente o ouvido, refugiu-me naquele regresso, e quase 50 anos depois penso naqueles três dias que sozinha vivi fechada no aeroporto internacional de Joanesburgo, apoiada pelos Bispos de Luanda e Lourenço Marques que regressavam, como eu, da Europa sem visto de entrada na África do Sul, eles por razões raciais, eram negros, eu porque os meus pais no meio de tantas mudanças politico administrativas desconheciam esta nova exigência.

A implacabilidade dos serviços de fronteira sul africanos tratou uma adolescente de 14 anos com o mesmo rigor com que ao tempo se tratavam os refugiados políticos.

Estes dias vividos por mim e pelos Bispos africanos, em corredores escuros, quartos tipo celas, alimentação racionada, são os territórios absolutamente impossíveis a qualquer memória que não aquela guardada por mim gentilmente.

Quando me vejo na sala de embarque rumo a Lourenço Marques, três ou quatro dias depois, percebo que a minha mãe esperou por mim para juntas regressarmos a casa.

Há itinerâncias que nunca mais nos deixam.

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