Do improvável #3 | Em Moscovo...(1)

 

Sempre que ouço estas noticias vindas da Rússia sobre envenenamentos, assassinos, violência ou prisões da oposição russa, recordo aquela primeira viagem a Moscovo, 2001, a minha primeira à Rússia, a convite da Câmara de Moscovo, a propósito do 850º aniversário da cidade, depois da queda da URSS, talvez a primeira festa cosmopolita da cidade, a primeira grande operação de comunicação e marketing politico, e seguramente, a primeira abertura do país ao Turismo. Para isso contavam com os jornalistas, claro! E lá fomos, um grupo muito interessante de pessoas, jornalistas do mundo inteiro, com a agenda oculta de anunciar a abertura do regime ao Mundo.

Nem todas as «estórias» que contámos ajudaram este propósito do governo da Federação Russa.

De Moscovo, e desse primeiro contacto apaixonante, guardo na memória, avulsas, imagens acontecidas:Putin tinha acabado de ser nomeado Presidente da Federação Russa, (ainda) não havia um único café na cidade, lembro-me que George Steiner não reconhecia a Moscovo o estatuto de cidade europeia, justamente pela ausência total dos cafés, esses lugares de «conspiração» escrevia Steiner; as casas de banho do Gum, os célebres armazéns soviéticos da Praça Vermelha, (ainda) eram turcas, isto é, não tinham sanita, apenas um buraco para onde necessitávamos, as cortinas do palco do Bolshoi (ainda) eram decoradas com a foice e o martelo, o metro de Moscovo (ainda) não tinha resolvido o problema dos corpos alcoolizados expostos nas suas plataformas, e a cidade (ainda) deixava transparecer nas ruas, bairros, no património, e na paisagem humana, o horror da decadência soviética.

Uma viagem é «aquilo» que levamos connosco, lembra Michel Onfray na sua Teoria da Viagem, e eu, para essa primeira reportagem a Moscovo, levava a atmosfera política da guerra fria que na década de sessenta, setenta, oitenta e noventa chegava-nos pelo jornalismo, literatura e cinema.

Na agenda dos jornalistas convidados havia um encontro com o Vice-Ministro da Cultura. Entrámos num bairro fidelíssimo às descrições de Carré, o edifício do Ministério correspondia exactamente às páginas descritas pelo escritor, o speaker lá estava com o seu casaco de pele castanha e camisa preta de gola alta, como o cinema nos ensinou acerca do design de moda soviético, só o Ministro parecia conhecer alguns, pequenos temas, da moda ocidental.

Todos os jornalistas tinham direito a uma pergunta formulada em língua inglesa, a qual o speaker traduzia para russo. O Ministro respondia em russo e o speaker retrovertia. Parecia uma dança barroca. O resultado era uma narrativa à qual não correspondia nem a pergunta nem a resposta.

Quando chegou a vez do Tiago Salazar, um antigo camarada deles, à data jornalista freelancer da Revista Rotas & Destinos, salta a pergunta decisiva: «senhor Ministro acabou de nos dizer que o seu legado para a cultura é a Enciclopédia russa, agora publicada. Diga-nos, então, qual a entrada que mais apreciou?». O Ministro: «vou responder directamente em inglês, a entrada que mais gostei foi a relativa a Estaline». O speaker saiu da sala e apesar de nunca mais termos precisado de tradutor, nenhum de nós acreditou que Putin ousasse branquear a tradição política russa. Quando nos Museus os guias passavam das salas czarinas para aquelas que correspondiam ao fim da era soviética, muitos de nós perceberam que a tradição, finalmente, seria recuperada.

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